A compaixão nasce da fonte da vida. Quando o autoconhecimento se aprofunda, quando ele finalmente resvala nessa fonte, a compaixão surge espontaneamente. A consciência a anima.
A compaixão é a qualidade demonstrada por aqueles que conseguem expressar sem reservas a benevolência, a consciência que se apieda do sofrimento alheio e que se dispõe a aliviá-lo. A compaixão é a mais delicada e gratificante emoção de que é capaz a psique humana.
Se for descrita com fidelidade, a compaixão estimula o ouvinte. Shakespeare colocou estas palavras na boca de Pórcia, em O Mercador de Veneza:
"A graça do perdão não é forçada;
Desce dos céus como uma chuva fina
Sobre o solo: abençoada duplamente.
Abençoa a quem dá e a quem recebe;
É mais forte que a força: ela guarnece
O monarca melhor que uma coroa;
O cetro mostra a força temporal,
Atributo de orgulho e majestade,
Onde assenta o temor devido aos reis;
Mas o perdão supera essa imponência;
É um atributo que pertence a Deus".
* Extraído de O Mercador de Veneza, Editora Nova Fronteira, 1990, tradução de Barbara Heliodora.
Piedade, compaixão e bondade não são sentimentos acidentais. Eles floresceram das tendências universais da natureza de acordo com o processo de evolução. Todos os seres vivos apresentam padrões de comportamento que favorecem o todo acima dos interesses individuais. As células não trabalham para si mesmas, mas para a totalidade do tecido do qual fazem parte.
Do mesmo modo, os tecidos trabalham em conjunto para manter a unidade dos órgãos, e estes, por sua vez, protegem a unidade do organismo. A biologia moderna encara esse processo como uma espécie de altruísmo geneticamente programado. Qualquer parte de um ser vivo é capaz de morrer para proteger a totalidade genética de uma entidade maior.
Chamo esse processo de início da compaixão porque cada célula “solidariamente” sente a necessidade das outras, e reage automaticamente. Como característica humana, a compaixão pode ser nobre, mas também evidencia a permanência saudável de um instinto básico inato. Não existe cura sem compaixão. Ela motiva o corpo e estimula o desejo de ficar bem.
Quando essa qualidade é deficiente, o médico aparece para supri-la. Mas, sem compaixão, suas técnicas são limitadas. A compaixão que flui do médico desencadeia uma série de reações bioquímicas que efetua a cura em nível fisiológico.
Norman Cousins coloca muito bem a questão quando escreve a respeito de seus pacientes e seu vasto conjunto de necessidades emocionais;"eles querem apoio, querem ser ouvidos; querem sentir que sua morte ou sua vida fazem diferença para o médico, uma grande diferença.Querem sentir que os médicos pensam neles.".
A capacidade de pensar nos doentes é a força mais poderosa do exercício da medicina, pois ela exige do médico um fluxo de sentimento oriundo dos níveis mais sutis. Ela exige compaixão. A compaixão não é aquilo que as pessoas geralmente entendem por altruísmo. No final, é um mecanismo de auto-ajuda, pois restaura e renova a pessoa que dá. Ela cura aquele que cura.
A incapacidade de demonstrar compaixão significa estar isolado dos sentimentos alheios, e isso é perigoso, pois pode desencadear a doença. Apesar de a compaixão ser inata, ela quer crescer e evoluir; portanto, pode ser cultivada. Nesta passagem, o lama tibetano Tarthang Tulku Rinpoche fala do cultivo da compaixão:
"Todas as coisas são extraordinariamente inter-relacionadas. Quando nos damos conta disso, todas as relações passam a se fundamentar no amor — não no amor calculado, mas na amizade natural de todos os seres, na abertura natural que se baseia no entendimento natural dos relacionamentos. Gradualmente, a idéia da automotivação desaparece, e você percebe que quando não tem motivação e interesses próprios todos os problemas se resolvem. Os problemas individuais deixam de existir."
Acho esse texto inspirador porque mostra como o estado de espírito ideal — “Não tenho problemas” — cresce nas pessoas como parte simples da vida. Ele não é forçado nem incessantemente procurado. O importante, conforme Tarthang, é ver os outros como parte de si mesmo:
"Quanto mais conheço os problemas dos outros, mais meus próprios problemas se dissolvem. Por isso, é importante observar os problemas alheios [...] "
O conhecimento do outro aumenta o autoconhecimento; o autoconhecimento aumenta a compaixão; a compaixão aumenta o conhecimento do outro. Trata-se de um círculo muito justo no qual só podemos entrar se abandonarmos a preocupação excessiva com os próprios problemas.
As várias escolas da psicologia moderna, a começar pela psicanálise, são em certa medida culpadas pela fomentação excessiva desse tipo de preocupação. As sociedades orientais não conseguiram converter em bem-estar social seus ideais filosóficos, mas se beneficiaram do conceito de que todos devem se dedicar aos outros seres conscientes. O próprio Buda é conhecido como “o Compassivo”.
Manter-se ligado aos próprios problemas não é sinal de autodesenvolvimento, e sim de uma visão estreita e atrofiada. A saída é a compaixão. Pelos olhos da compaixão, todos os seres se igualam. Somos parte da vida infinita do universo e todos merecemos nele o mesmo lugar. Essa realidade aparece em toda a sua extensão quando as portas da percepção se abrem. Acho que este poema de
Rabindranath Tagore explica melhor o que quero dizer:
"Upagupta, o discípulo de Buda, dormia no chão, aos pés do muro da cidade de Mathura. Todas as luzes estavam apagadas, as portas, fechadas, e todas as estrelas escondidas no sombrio céu de agosto. De quem eram os pés cujos guizos tilintavam e que de súbito tocaram seu peito?
Despertou Sobressaltado, e a luz da lanterna de uma mulher caiu sobre seus olhos clementes. Era a jovem dançarina, recoberta de joias, vestida num manto azul-claro, embriagada com o vinho da juventude. Ela baixou a lanterna e contemplou o jovem rosto de austera beleza.
“Perdão, jovem asceta”, disse ela. “Venha, por favor, a minha casa. O pó da terra não é leito adequado para ti.” Ao que o jovem respondeu: “Mulher, segue teu caminho; quando chegar a hora eu te procuro”.
De repente, a noite escura mostrou os dentes no clarão de um relâmpago. A tempestade rugiu num dos cantos do céu, e a mulher tremeu com medo do perigo desconhecido. Ainda não havia se passado um ano. Era a noite de um dia de abril, primavera. Os galhos das árvores do caminho haviam florescido. O som doce de uma flauta flutuava no morno ar primaveril.
Os cidadãos estavam no bosque para a festa das flores. Do meio do céu, a lua contemplava a cidade silenciosa. O jovem asceta vagava pela rua vazia, enquanto nos galhos das mangueiras cucos enamorados e insones entoavam seu lamento.
Upagupta deixou para trás os portões da cidade, e parou ao pé da muralha. Era uma mulher que tinha a seus pés, na sombra das mangueiras?
Dominada pela peste negra, o corpo marcado pela varíola, havia sido expulsa da cidade para evitar o contágio venenoso. O asceta sentou-se a seu lado, pôs sua cabeça nos joelhos e umedeceu-lhe os lábios com água, e untou-lhe o corpo com bálsamo de sândalo.
“Quem és tu, piedoso?”, perguntou a mulher. “Chegou a hora, afinal, de visitá-la, e aqui estou”, respondeu o jovem asceta.
Deepak Chopra
Fonte: Extraído do Livro "Conexão Saúde"