Na maior parte do tempo, estamos mais conscientes de como os outros nos tratam do que de como nós mesmos nos tratamos.
Isso ocorre porque estamos pouco familiarizados com a possibilidade de sentir nossos próprios sentimentos sem nos sobrecarregarmos com os ditames dos pensamentos rígidos advindos da autocrítica.
Quem não foi bombardeado com frases acusatórias de como deveríamos ser e o que deveríamos fazer para nos tornarmos pessoas mais felizes?
Quando nos sentimos encurralados por situações que nos oprimem e revelam que ainda não somos bons o suficiente para lidar com as exigências da vida, estas frases voltam à nossa mente fazendo com que a auto-observação transforme-se numa obrigação, numa ordem.
Tal imposição nos leva a uma sensação ainda maior de ineficiência e inadequação. Pois, ao mesmo tempo em que nos propomos a sentir nossos sentimentos (com a esperança de que assim poderíamos achar os defeitos que nos levaram a sofrer), nos desestabilizamos com as expectativas exageradas a respeito de nós mesmos de como deveríamos nos comportar para não sofrer deste jeito.
No entanto, ter consciência de nossos limites não quer dizer reconhecermos que somos seres limitados. Mas, simplesmente que podemos respeitar o estado em que nos encontramos e buscar novos recursos para avançarmos novamente. Muitas vezes, quando tocamos nossos limites, ao mesmo tempo em que sentimos vontade de avançar, sentimos o medo da falta de recursos para fazê-lo.
Nestes momentos, tanto recuar como seguir em frente serão atitudes desestabilizantes. Então, é melhor admitir que ambos lados estão presentes e aguardar mais um pouco antes de desistir ou arriscar-se precocemente. Precisamos nos poupar, recuperar nossa força vital e psíquica. Afinal, se não reconhecermos nossos limites inevitavelmente cairemos na exaustão.
Este tempo de cura envolve um processo de relaxamento e entrega, que nos leva a recebermos a força que necessitamos. Enquanto estávamos demasiadamente presos às nossas percepções, não nos dávamos conta do quanto estávamos fechados para receber ajuda. Na expectativa de sermos pessoas eficientes e autônomas, muitas vezes nos cegamos em relação aos outros. Ou seja, não é bom confundirmos responsabilidade pessoal com a presunção de que podemos comandar tudo sozinhos!
Em nossa cultura capitalista, não há espaço para desenvolvermos a gentileza de sermos honestos em reconhecermos nossos reais limites. Devemos sempre fazer mais. Até mesmo quando nos propomos a descansar, lançamo-nos em atividades que nos exigem mais esforço e concentração. Reconhecer nossos limites é cultivar respeito por nós mesmos.
Aliás, quando somos honestos com os nossos próprios limites, estamos sendo honestos também com os outros. Ser verdadeiro consigo mesmo é a base para sermos verdadeiros com os outros. É simples e claro: não podemos dar mais do que somos capazes em todas as áreas de nossa vida, sejam elas de ordem afetiva, profissional ou financeira. Mas, em geral, evitamos encarar nossas limitações presentes para não sentirmos o risco da exclusão.
Curiosamente, é ao agir enganosamente (como se pudéssemos, quando na realidade não somos capazes), que corremos o risco real de sermos excluídos. Pois, uma vez que nossa incapacidade for revelada, seremos inevitavelmente vistos em nossas falhas. Mas, o medo de ser excluído ainda é maior do que a capacidade de revelar nossas vulnerabilidades.
Então, este é o ponto a ser encarado: a sensação de insuficiência nos remete à ameaça de sermos excluídos! Aprendemos a ler este risco ainda quando éramos crianças bem pequenas. Sob a pressão de atender as exigências de sermos uma criança perfeita para não decepcionarmos os nossos cuidadores, nos comportamos como se fosse natural dar conta de tudo que nos fosse solicitado.
Quem não reconhece a lembrança de uma comunicação implícita que de uma vez que nossos pais nos davam tudo que necessitássemos deveríamos ser igualmente capazes de responder à altura do que eles almejavam para nós? Desta maneira, a priori, estaríamos nos comportando de acordo com o esforço incomensurável que eles faziam por nós.
Diante desta lei silenciosa de ordem e obediência, não havia espaço para o autorreconhecimento de nossas falhas e limites. Era feio e inadequado ter limites. Afinal, diante de nossas fraquezas frequentemente escutávamos: "É só querer". Incapazes de responder a tais expectativas exageradas, crescemos com a sensação, quase que despercebida, de que quando oferecermos algo, jamais não será o suficiente. Aliás, o outro, além de pedir por mais, não terá empatia pelo nosso esforço já realizado...
A maioria de nós foi educada com a mensagem de que poderia ser e fazer sempre mais e mais. Por exemplo, quando fazíamos algo bem, ao elogio era adicionado uma expectativa ainda maior: "Muito bem, agora que fez isso, faça aquilo". Em outras palavras, a energia do reconhecimento não estava unicamente associada ao regozijo, mas também cobrança de algo "mais". Neste sentido, o próprio reconhecimento vinha carregado de uma mensagem de insuficiência!
Diante da insuficiência, sentimo-nos isolados, encapsulados na inadequação. Como romper esta barreira que um dia nos serviu para nos proteger do risco de decepcionar os outros com nossas fragilidades? Como sanar a sensação de dever ser ou dar sempre mais?
Primeiro, podemos reconhecer a ansiedade e a inadequação como sentimentos que nos revelam algo além do desconforto: eles nos alertam que estamos nos pressionando e sendo pressionados.
Segundo, reconheça este aviso como um alerta importante e não duvide de si mesmo. Pois a dúvida nos paralisa instantaneamente. Continue a encarar a inadequação como um aviso de fronteiras. Lembre-se: os outros podem nos tratar mal, mas ainda assim podemos nos tratar bem!
Em seguida, devemos trabalhar o medo da exclusão. Pois, diante da ameaça da exclusão acionamos o mecanismo compulsivo de suprir as exigências alheias. Mas, lembre-se: não reconhecermos nossas fragilidades é um modo de nos excluirmos de nós mesmos!
Ao aceitarmos nossos limites, sejam eles passageiros ou não, tornamo-nos inteiros. Neste sentido, reconhecer nossos limites é tanto uma forma de auto-organização como de harmonizar os relacionamentos com os outros. Pois, quando revelamos nossa condição real, os outros também poderão nos perceber de um modo integrado.
Nesse momento, a ameaça de sermos excluídos não será mais vista como uma única possibilidade. Na medida em que percebemos que o medo da exclusão é regido por nossas projeções mentais negativas, podemos olhar a realidade com novas possibilidades de solução.
Tudo é cíclico. Assim como nosso desenvolvimento interior. Podemos a qualquer momento treinar o autorreconhecimento se nos alegrarmos com o que já sabemos e quem somos agora mesmo!
Bel Cesar
Psicóloga, pratica a psicoterapia sob a perspectiva do Budismo Tibetano desde 1990. Dedica-se ao tratamento do estresse traumático com os métodos de S.E.® - Somatic Experiencing (Experiência Somática) e de EMDR (Dessensibilização e Reprocessamento através de Movimentos Oculares). Desde 1991, dedica-se ao acompanhamento daqueles que enfrentam a morte. Autora dos livros Viagem Interior ao Tibete, Morrer não se improvisa, O livro das Emoções, Mania de sofrer e recentemente O sutil desequilíbrio do estresse, todos pela editora Gaia.
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Fonte: Somos Todos Um